Terça-feira foi dia de finados e eu soube disso. Sentir a data já só me foi possível um dia depois. Em meio a uma forte dor de cabeça e do estômago às voltas, alguém me disse certeiro: ontem foi finados. E então imediatamente abri em mim e chorei metros cúbicos. Sugiro: chore. Pensar é diferente de sentir. E o meu pensamento é um músculo hipertrofiado. Enquanto que me esqueço de sentir; caminho no rumo que o mundo hoje propõe: não sinta, sobretudo se for dor. Para cada vislumbre de dor duas mil frases motivacionais. E eu não tenho nada contra as frases motivacionais, pelo contrário, gosto… Diariamente recebo o pensamento do dia, que é sempre muito bonito; imagina sentir estes pensamentos? Oxalá que isso aconteça. As palavras arranjadas de determinada forma dão efeito, prometem aquela coisa completamente contrária ao que, muitas vezes, se está sentindo; as frases bonitas também fazem brotar a dúvida: se você não está sentindo os sentimentos bonitos é porque deve ter algo de errado com você. Freud me ensinou a desconfiar de algo que é constantemente e rigidamente afirmado. Para um extenso e difundido vocabulário de palavras e frases bonitas um mundo que sofre. Freud também me contou sobre o inconsciente. Eu me esqueci de sentir o dia de finados, mas o inconsciente, sentinela insone, registrou. Dor. À noite, tomei meio analgésico para a dor no cérebro. Já o meu pé na hipocondria me advertiu que talvez fosse melhor, por via das dúvidas, marcar o médico. O seguro morreu de velho. E o desconfiado ainda vive. Não sobrecarreguemos o aparelho mental com contas que podem muito bem não ser dele. De repente, prefere-se ir ao médico ouvir que o problema é a lactose. Há algo de libertador nos diagnósticos médicos. “É gastrite”, “É enxaqueca”, gosto dessa forma como o diagnóstico é colocado, como se fosse algo exterior a nós; é aquilo, pronto, e eu não tenho nada a ver com aquilo que não mais que de repente brotou em mim. Outro dia alguém me contou que teve um surto, mas logo justificou “é porque estava em privação de sono”. Fiquei preocupada. Eu me pergunto se ela se perguntou “Mas por que eu não estava conseguindo dormir?” “Mas como foi que eu surtei, o que é que eu estava sentindo?”. Para além de chorar, sugiro que você encontre formas de conseguir nomear os seus sentimentos. Dar nome aos bois é importante, percebo isso. Tristeza é diferente de Ansiedade que pode ser bem diferente de Angústia. Outro dia, contaram-me que um amigo tirou a própria vida, o que me fez lembrar um amigo de infância que anos atrás também tirou a própria vida. Para quem fica, o suicídio é uma pergunta sem resposta.

Semana passada, numa roda de conversa sobre a pandemia, o historiador colocou da seguinte forma este período que atravessamos: “O não tempo. Não tempo em que a morte esteve a vigiar a vida. E eu torci para que essa chuva não me molhasse”; metáfora mais linda não haveria mesmo de ter – repare, há jeitos incrivelmente bonitos para se falar de coisas tristes e assustadoras.  Também pensei nos antropólogos que estudam os rituais humanos. Hoje penso que os rituais são importantes, eles têm um impacto na nossa subjetividade. E este dia de finados, talvez mais do que os anteriores, é-me necessário. Penso nas minhas pessoas, nos meus amores. Não me esqueço das vossas pessoas, dos vossos amores. Choremos os nossos mortos e as nossas mortes. A todos eles, o escrito do poeta:

Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: Ele Morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte e sul pra mim, leste, oeste e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem cada estrela, joguem o sol fora,
ponham de lado a lua — nada disso agrada,
tirem o mar daqui, mandem o bosque embora,
porque tudo só pode agora dar em nada.

W. H. Auden – BLUES FÚNEBRE (Tradução de Nelson Ascher)

Que todas as palavras possam ser ditas e que todos os arranjos possam ser feitos entre elas, não só para se conseguir os efeitos bonitos, mas para podermos enxergar melhor e sentir. Sentir. Eis outra palavra que agora me ocorre: Coragem.

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